Miguel Neto: O Incra também atua com ordenamento territorial
Miguel Neto, professor e analista do Incra (foto de Soraia Carvalho)
O ex-coordenador de Cartografia do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e hoje professor e analista do Incra-Bahia Miguel Neto diz que é preciso acelerar o processo de amadurecimento da nova estratégia do órgão, iniciada em 2016, de abordar projetos de assentamento pela titulação dos lotes, dando ao ordenamento territorial um papel de Governança Fundiária: “Os efeitos dessa nova estratégia ainda vão demorar um tempo para serem percebidos de forma significativa e, por isso, é preciso buscar formas de acelerar esse processo”, diz Neto em entrevista ao portal Geocracia, lembrando que, desde a sua criação, em 1970, o Incra tem como missão não só realizar a reforma agrária mas também o ordenamento do território.
Engenheiro cartógrafo, especialista em georreferenciamento de imóveis rurais e com MBA em Auditoria e Gestão Ambiental, Neto diz não ter dúvidas quanto à necessidade de se criar um órgão central no Governo Federal para coordenar a cartografia e a geografia nacionais, como reza o art. 21, inciso XV da Constituição (Compete à União organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional): “A estruturação de dados geoespaciais e a própria regulamentação do artigo 21, XV podem favorecer demandas históricas dos setores da cartografia e geografia no Brasil”.
O setor agropecuário e o Brasil são os maiores prejudicados com o atraso da regularização fundiária, apesar de o mundo já dispor de tecnologias de georreferenciamento para resolver esse problema de maneira rápida e eficaz. Nossa vizinha Colômbia anunciou que até 2025 terá todo os eu território mapeado em escala 1:25.000. Por que então temos até hoje o artigo 21 inciso XV da nossa Constituição por regulamentar deixando nossa cartografia e geografia sem um responsável que estabeleça regras e critérios?
Entendo que o caos fundiário brasileiro tem uma origem bem definida e remonta à época do descobrimento e do domínio do império português. A estrutura territorial desorganizada vem servindo, ao longo dos tempos, a interesses excusos e práticas irregulares por parte de classes dominantes da sociedade, impactando flagrantemente o meio rural do país, mas também agindo silenciosamente nas zonas urbanas.
O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) divulgou, em 2020, que cerca de 50% habitações no Brasil são irregulares, um percentual que representa 30 milhões de imóveis. É muito desconhecimento que impacta diretamente na receita dos municípios e, consequentemente, no seu desenvolvimento. Na zona rural, considerando a base de cerca de 7 milhões de imóveis cadastrados no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), pouco mais de 10% possuem o georreferenciamento certificado pelo Incra em atendimento à Lei de Registros Públicos.
Vários países na América do Sul já avançaram bastante na gestão do território e tornaram seus processos mais eficazes e céleres. O exemplo da Colômbia chama bastante atenção pelos excelentes resultados alcançados em um curto espaço de tempo. A Colômbia e outros países vêm captando recursos internacionais e financiamentos para isso, vinculando as ações de gestão territorial aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O Brasil já possui a tecnologia, conhecimento e profissionais aptos a propor soluções que visem a organizar todo esse caos. No entanto, esbarra em uma legislação complexa, e, muitas vezes, contraditória, em conflitos institucionais e na ausência de um órgão central que possa encabeçar a condução desse trabalho, definindo diretrizes e atuando na articulação entre as diversas instâncias de poder para promover os ajustes necessários à construção de uma governança fundiária de fato.
A criação desse órgão central no Governo Federal tem sido alvo de diversos debates em universidades, congressos e simpósios que participo. Não resta dúvida quanto à sua necessidade e viabilidade, mas é preciso vontade e articulação política para sua implementação. A estruturação de dados geoespaciais e a própria regulamentação do artigo 21, inciso XV da Constituição podem favorecer demandas históricas dos setores da cartografia e geografia no Brasil.
Como vê os recentes movimentos de municípios pelo cadastramento de imóveis? Eles poderiam contribuir para o aperfeiçoamos do cadastro do Incra?
No tocante a imóveis rurais, o movimento dos municípios ainda é muito tímido. Atribuo isso às limitações da legislação e procedimentos vigentes. No meu entendimento, esse fato está diretamente ligado à ausência de uma instituição voltada exclusivamente para gestão territorial no país.
No âmbito do Governo Federal já existe tecnologia disponível e mão de obra qualificada para o desenvolvimento de um modelo de gestão descentralizada e colaborativa. No entanto, esbarra-se na falta de visão estratégica para definição de diretrizes e atribuições aos diversos ministérios e autarquias e na articulação com os poderes Judiciário e Legislativo. Nessa mesma linha, estados e municípios necessitam de direcionamento para o estabelecimento de ações articuladas com o propósito de implantação de um modelo de Governança Territorial alinhado aos requisitos do Pacto Federativo.
É preciso enxergar o nosso território como um só, sem diferença entre rural e urbano. A visão conceitual de cadastro territorial deve ser implementada urgentemente no Brasil e é preciso estabelecer um comando estritamente técnico, mas atento às relações com o meio ambiente e o desenvolvimento socioeconômico. As tomadas de decisão por parte de todos os poderes precisam levar em consideração o conhecimento do território e suas relações, e não apenas apontar caminhos com base informações frágeis e narrativas sem fundamento técnico.
A vida das pessoas acontece nos municípios e é lá que os investimentos e políticas públicas precisam chegar. Para esse movimento acontecer de forma estruturada e bem alicerçada é preciso promover alterações na legislação e muita articulação com estados e municípios, o que pode demandar bastante tempo ou até nem avançar. No entanto, pensando em ações mais imediatas, o Incra pode despontar como um grande protagonista na construção de uma nova história para a gestão territorial brasileira. Para tanto, é preciso repensar sua atuação institucional, recompor orçamento e construir modelo de gestão que valorize gestores, servidores e colaboradores do órgão.
O Incra nasce como um órgão de reforma agrária, mas cada vez mais tem se comportado como um órgão de gestão de terras. Como essa atividade tem transformado o DNA do órgão?
Desde seu nascimento, na década de 1970, o Incra tem como missão o desenvolvimento da reforma agrária e ordenamento territorial. Entretanto, suas ações sempre pesaram mais favoravelmente à visão de distribuição de terras, deixando em segundo plano a gestão do território rural no país.
Somente após 2016, houve uma tentativa mais efetiva no sentido de equilibrar os pesos entre a reforma agrária e ordenamento territorial. Atualmente, há uma política voltada aos Projetos de Assentamento direcionada à titulação dos lotes, e o ordenamento territorial passou a ser tratado conceitualmente como Governança Fundiária, propondo ações efetivas para a regularização fundiária em terras da União e investimentos significativos no desenvolvimento dos sistemas eletrônicos. Os efeitos dessa nova estratégia ainda vão demorar um tempo para serem percebidos de forma significativa e, por isso, é preciso buscar formas de acelerar esse processo.
Mesmo com o poder de gerir o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), que juntos compõem o cadastro técnico para o meio rural de alta qualidade, o Incra não conseguiu firmar-se de forma significativa perante o governo para ampliação de orçamento voltados a investimentos em infraestrutura, tecnologia e pessoal.
Creio que estamos passando apenas por uma “harmonização institucional”, sem mudança de DNA. Talvez apenas com a revisão da política de gestão territorial no país isso poderia acontecer.
Na qualidade de ex-chefe do Serviço de Cartografia do Incra-BA (2011-2017), qual é sua visão sobre a atividade cartográfica do Incra e como ela tem interagido com a INDE?
Além da chefia do Serviço de Cartografia, tive a oportunidade de atuar como coordenador Geral de Cartografia do Incra em Brasília, entre os anos de 2018 e 2019. Nesse período, por ter representado a instituição no Comitê de Normatização do Mapeamento Cadastral da Comissão Nacional de Cartografia (Concar), percebo que estamos prontos para compor a estrutura da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (INDE).
No entanto, a extinção da Concar paralisou esse trabalho de normatização e definição dos requisitos a serem seguidos pelas diversas instituições produtoras de dados cadastrais. Esse trabalho precisaria ser retomado, pois coaduna com a série de investimentos do governo federal na promoção de ações de regularização fundiária em todo país.
Que contribuições as geotecnologias estão trazendo para o meio rural e que vislumbre isso pode nos dar sobre o futuro da atividade agrícola?
Tenho estudado bastante esse assunto e trabalhado no conceito de Geo 4.0, que são justamente as geotecnologias no âmbito da quarta revolução industrial, ou seja, a Indústria 4.0. Defino o Geo 4.0 como um conceito baseado nas novas tecnologias e suas tendências de inovação, atendendo a diversas demandas da sociedade, exigindo dos profissionais bastante conhecimento e um acompanhamento de tudo que está acontecendo na área das Geotecnologias.
O movimento Tech também atingiu as geotecnologias, gerando as geotechs. Diversas startups vêm apresentando soluções para o setor agrícola com um custo bastante reduzido. Em destaque temos as empresas de drones e vants sanando dificuldades no mapeamento, monitoramento e pulverização de áreas cultivadas. Também temos o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial para o gerenciamento de lavouras e seu monitoramento em tempo real.
Como todos os setores da indústria brasileira, as geotechs precisam figurar como prioridade na aplicação de políticas públicas, girando a engrenagem do desenvolvimento e atendendo, principalmente, o setor do agronegócio, dada sua representatividade em nossa economia.
Também percebo mudanças no perfil dos profissionais que atuam com as geotecnologias. O mercado tem moldado um profissional extremamente qualificado com uma visão que vai além de sua atuação regional. Assim, estar atento às tendências globais e sua repercussão no mercado local é fundamental para propor soluções aos clientes, cada vez mais exigentes.
Fonte: Geocracia
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